Masha Gessen - O futuro é história - como o totalitarismo se apoderou da Rússia
Gletkin nasceu em Tumui na margem esquerda do rio Lena, na Rússia siberiana em 1905, ano em que se iniciaram os movimentos sociais na Rússia. Esta coincidência com o ano das convulsões sociais veio a gravar-lhe o destino-me a forma como encarou a vida, o mundo e a sua amada Rússia.
Filho de camponeses pobres, muito pobres, viu o ser pai morto às mãos de guardas ao serviço de Nicolau II e do Kulák do feudo. A sua infância foi muito diferente do que imaginamos. Gletkin limitava-se a sobreviver. E nesse processo, sempre que possível apoiava a mãe no sustento dos seus quatro irmãos todos mais novos. Tentava o sustento, expressão curiosa para tempos em que a tentativa era bem mais frequente que o sustento. A irmã Mitcha e o irmão Ivanildo morreram antes dos dois anos. A sua morte não lhe causou constrangimento. Sabia que eram dois anjos que tinham partido para os domínios do Senhor. E isso não era de forma alguma um castigo. Para os que partiam aliviava-se-lhes a punição terrena, para os que ficavam haveria mais miséria para distribuir.
Não foi com sobressalto que aos doze anos Gletikin que assistiu à revolução bolchevique. Jovem, mas não o demasiado para ver a verdade das convulsões sociais, estava disposto a deixar-se levar na torrente. Não conhecia Marx ou Engels, nunca tinha ouvido falar no manifesto comunista, não conhecia Lenine, mas sabia sim o que a era miséria, e a opressão dos que ainda seres humanos iguais a si, nunca tinham passado uma ínfima parte dos tormentos a que nos seus magros 12 anos tinha assistido. Viver não poderia ser um castelo de suplícios, miséria e injustiças. Com a revolução de Outubro abria-se agora uma janela para um mundo novo e ele, o jovem Gletkin de 12 anos não estava disposto a ficar apeado no cais enquanto o sonho passava como um turbilhão no tempo e na história.
Logo que a oportunidade lhe trespassou a soleira, agarrou-a, não como um desesperado que se pretendesse salvar, mas antes como alguém que achava ser seu dever tomar o seu destino nas mãos e impedir que homens, outros quaisquer seres humanos viessem a ser espezinhados por um semelhante.
A oportunidade surgiu quando junto às margens do rio Lena construíram a maior fábrica de carris de aço da europa. Arranjou lugar entre os operários, todos eles camponeses na semana anterior. E não lhe foi difícil fazer-se notar e subir na hierarquia. Primeiro da fábrica, onde o seu ímpeto e empenho revolucionário se fez notar, e poucos anos depois em Moscovo para onde foi enviado para ser integrado nos quadros do PCUS. Não participou na primeira guerra mundial, nem na guerra civil russa que terminou em 1922, tinha na altura 17 anos. Na década de 20, teve o seu encontro com a revolução, aprendeu a ler, leu os pais fundadores da nova sociedade e participou com empenho na construção da mesma. Assistiu à revolta de Kronstadt e ao “navio dos filósofos”. Estes processos de eliminação física ou de expatriamento de todos aqueles que não entendiam que o ser humano, o individual, nunca se poderia sobrepor ao coletivo, nunca o incomodaram. Muito pelo contrário, sempre os viu como sacrifícios que teriam de ser cometidos para que o individuo fosse uma parcela do coletivo e nunca ver a sociedade como um coletivo de indivíduos. A unidade era a sociedade. E quem não entendesse isso deveria ser apagado da sociedade. Não havia qualquer ódio a quem assim não fosse, apenas a sociedade, o coletivo rejeitaria como um corpo estranho quem de alguma forma quisesse que a sua individualidade fosse notada. Era notada e imediatamente expurgada. Não foi então estranho que na década de 30, aos 30 anos tivesse integrado os corpos da NKVD, e ao serviço do partido tivesse participado nos expurgos. E fê-lo sempre com empenho e abdicando da individualidade. O mesmo empenho com que aos 14 anos, na fábrica de carris de aço de Tumui, denunciou todos aqueles que pela inércia e falta de furor revolucionário boicotavam a alvorada da nova sociedade. Foi sim com a responsabilidade do coletivo que assistiu ao fuzilamento do seu irmão mais novo, Yure, que tinha sido denunciado numa actividade do mercado negro. Ninguém era mais importante que o coletivo e a mãe rússia. Ninguém, nem a família. Norteado desta convicção estava disposto a fazê-la valer contra todos os reacionários com que cruzasse. Não havia meio termo, a transformação da sociedade e a revolução eram ainda como uma pequena criança indefesa que se não protegida dos males do mundo rapidamente sucumbiria. Foi assim que na sua qualidade de inquiridor participou no “Processo Rubachov”, trazido ao conhecimento público por Arthur Koestler. Nesse e em muitos outros, e sempre com sucesso obteve dos contra-revolucionários a sua declaração de marginalidade e como tal o reconhecimento de não mais terem lugar na individualidade do coletivo. Eram corpos estranhos.
Participou na segunda guerra mundial, esteve no cerco de Estalinegrado e foi vitorioso. Vitorioso na bravura e no sentimento de coletivo que deu aos seus homens. Terminou esses tempos de provação sem uma mão que perdeu com uma granada. Perdeu a mão, mas não o pulso para tomar as rédeas do destino do coletivo. E sempre em representação do coletivo acompanhou as tropas russas até à vitoria em 22 de abril de 1945. Tinha agora 40 anos, uma mão a menos, mas um orgulho desmedido na sua pátria, na sua nação e na sua causa. E se até aí a tinha abraçado com ambas as mãos, agora não tendo a esquerda, agarrou a causa do coletivo com todo o seu corpo e o seu ser, numa simbiose de onde Gletkin e coletivo eram indissociáveis. E que orgulho tinha do que tinham conseguido! Tinham vencido os panzers nazis, tinham expandido o império da causa até às entranhas do ocidente burgues. Tinha orgulho no seu líder que na conferencia de Yalta mostrara ao mundo o que uma ideia e um coletivo podiam conseguir. Orgulho, sim, creio que esse era o único pecado a que se permitia. Finais de anos 40 e até à morte do amado líder em 1953 dedicou-se de corpo e alma às suas funções no partido e no comité de segurança do estado (KGB). Com a subida de ao poder de Nikita Khrushchev em 1956 e muito em particular após o XX congresso do PCUS, Gletkin então com 50 anos inicia o seu processo de desgosto para com a ausência de sensibilidade, que os dirigentes pós Estaline pareciam fadar ao papel do coletivo nos desígnios da sociedade. Ao permitirem que o cidadão, o individuo fosse o destinatário da política, estava-se a negar tudo pelo que se tinha lutado. Todos os sacrifícios e atrocidades passariam assim a ser reconhecidos, como sacrifícios e atrocidades e não como um caminho glorioso rumo às manhãs que cantam.
Algo de muito errado se estava a passar com a sociedade soviética. De alguma maneira o sonho era posto em causa, e todos aqueles que dele tinham feito parte de alguma forma sentiam-se traídos, não pelo inimigo externo que sempre tinham denunciado, mas por algo interno, algo que ainda não tinha sido devidamente expurgado.
Com a deposição de Nikita Khrushchev em 1964, Gletkin então já perto dos seus 60 anos ainda conseguiu reunir forças para prestar um último serviço ao coletivo. Antes da sua morte em 1982, aos 77 anos teria de assegurar que os 3 filhos teriam doutrina adequada para seguirem as pisadas do pai na defesa do coletivo para honra e glória de todos os povos russos e nações que em liberdade tinham aderido ao coletivo da URSS. Glória à Rússia, glória a todos os povos da URSS, glória ao pai fundador, Josef Stalin, que com probidades tinha afirmado a causa coletiva junto da Alemanha nazi e do mundo burguês e capitalista. E a lição foi bem aprendida tanto pelos descendentes de Gletkin como por tantos outros que com a queda da URSS, a desagregação do império e o desapontamento da sociedade capitalista e de consumo iniciada formalmente em 1991, com o desastre que foram as políticas de Gorbatchov da glasnost e perestroika, e posteriormente, com o quase sempre alcoolizado Boris Yeltsin. Gletkin dava voltas na campa e enquanto as dava, 146 milhões de russos achavam que o caminho que seguiam, um caminho de degradação e degredo, não respeitava a história de uma nação que tinha tido expoentes como Pedro o Grande, Catarina II, e Josef Stalin, todos eles filhos da grande Rússia e que agora se via vexada pelo ocidente opressor.
Masha Gressen, no seu livro “O Futuro é História” conta-nos a história de Masha, Zhanna, Seryozha, e Lyosha, e na história destes personagens e suas famílias uma história da Rússia. Uma Rússia recente e de que forma esta mesma história se poderia refletir no que é a Rússia de 2023 e no seu futuro próximo. Ao fazê-lo contudo com base nestas quatro personagens limita-se a observar o que vais acontecendo com talvez menos de 20% da população. É por isso, e por achar que falta um personagem que se identifique com os 80% da população que apoia Pútin que escrevi esta ficção. Podemos não gostar, podemos abominar, mas eles estão lá e são 80% de 146 milhões. É demasiada gente para ser negligenciada. Foi este o motivo pelo qual escrevi esta história aproveitando a personagem de Gletkin descrita por Arthur Koestler no seu livro “Eclipse do Sol”. Pretendi com este exercício não justificar as ações que os russos têm, aos meus olhos, cometido. Mas é aos meus, e há seguramente 292 milhões de outros que no mundo o vêm de outra forma.